A necessidade da poesia

   Poesia, um bem supérfluo nos dias atuais? Ao contrário, uma necessidade nos dias brutais em que vivemos. A banalização da violência, a indiferença ante o sofrimento do outro, a liquidez dos sentimentos pode ser atenuada/combatida/desmanchada por um resgate desta sensibilidade embotada. Arte em todas as suas formas, leitura, literatura e dentro desta especialmente a poesia têm condições de furar o bloqueio que o ser humano construiu pra si mesmo. A poesia atinge camadas não-racionais das pessoas e consegue fazer fluir o que está represado em nós. Experimentem ler ao menos um poema por dia, receitar para os mais próximos -filhos, alunos, amigos, parentes, amores. Alguma coisa vai se modificando, lentamente…Parece pouco? Parece. Mas este pouco vai adquirindo um poder incrível, expandindo nossa sensibilidade, tornando-nos mais receptivos ao mundo e a todos os seres. Escutamos melhor a natureza. Enxergamos outras possibilidades. Nos transformamos em outras pessoas. Participamos de uma corrente poética, formada por todas as pessoas que estão usufruindo da poesia. E quem sabe assim transformamos o mundo também?

Lígia Savio

O Milagre dos Peixes

   Ela me convidou pra pescar, aquela mulher cujo nome até já esqueci… Tenho uma vaga ideia de que se chamasse Sônia. Ou talvez um nome mais simples, desses que o pessoal inventa juntando o nome do pai e o da mãe. Não sei mais… Ficou o essencial, enfim. Ela me convidou pra pescar de noite e eu aceitei, naquela terra onde eu “dei de parar”, em circunstâncias peculiares, digamos, “ligianas”, como disse uma amiga minha, ou seja, as mais inusitadas possíveis. Me preparei, acho que íamos pescar de tarrafa, entrar no mar à noite. Procurei ficar à altura do acontecimento, mesmo com a minha desajeitada urbanite. Acabou não acontecendo. Ela foi antes e pescou sozinha. Depois me convidou pra almoçar. Sei que fazia muito calor e eu não entendia por que tinham feito tantos pratos quentes. Uma multiplicação de peixes! De todos os tipos, preparados de muitas maneiras… Camarão à milanesa. Uma espécie de sopa de camarão que me pareceu escaldante e intragável. Que nada! Comi, suando feito uma louca e era uma delícia! Eu lembrava o Drummond: “Tudo se comunica. Tudo no coração é ceia”. Comeria tudo que ela me oferecesse. Ela era Babette e eu um daqueles camponeses, tímidos a princípio e depois ávidos. Talvez fosse a vontade de comer o mundo, de comungar com tudo. Era possível… Mulher incrível aquela, trazendo em si amorosamente lembranças de um companheiro desbragado, beberrão, farrista e amado por todos. Quantas faces temos? Mas ela não era nenhuma viúva de aldeinha portuguesa em eterno luto. Na sua casa, que guardava recordações dele e onde ela preferia não pisar muito, uma máscara dourada e fantasias de carnaval. Dela.

   E hoje, não sei por quê, acordo pensando nela, me sentindo muito peixes, signo da minha lua, capaz de abraçar e abarcar tudo que vivi, sem rejeitar nada. Afinal, somos feitos daquilo que se bebeu, consumiu e comeu.

Lígia Savio

Alice em qual país?

Alice

Ilustração original da obra “Alice”, de Lewis Carroll

    Do profundo abismo em que eu me achava… Mãos arranhadas de tentar escalar o poço, mãos arranhadas de ver que nada resiste, que de íntegras talvez só estas pedras contra as quais me bato, que outras coisas se esfacelaram, sempre se esfacelam. Ou deslizam, não sei. Nada tem um lugar fixo, tudo é instável. Mesmo aqui dentro, com estas paredes úmidas e cheias de ruídos furtivos. Sinto a presença de ratos, de pequenos animais fétidos. Me encolho então cada vez mais para que não me toquem, mas sinto um frêmito de patas minúsculas, pelos, antenas, focinhos. Me sinto à mercê desta vida repugnante e multiforme que sussurra a meu redor. Foi esse o mundo que me apareceu. Não sei se preferia o deserto do lado de fora do poço onde eu já caminhara até os pés me sangrarem. Talvez seja isso que atraia os bichos aqui dentro: o cheiro de sangue do meu corpo. Sem contornos, sem rumo, na escuridão, num profundo abismo, sem clamar a ninguém. Bato a cabeça contra as pedras, agora já sem medo de topar com lesmas, lacraias ou qualquer outro ser rastejante ou pegajoso. Bato a cabeça num gesto de carpideira e algo escorre de mim, não sei sangue ou água que me batiza no fundo poço.

(À beira do túnel, o coelho espera enquanto Alice conta essa outra história).

Lígia Savio

Literatura e Astrologia

   Ao se pensar em certos personagens marcantes da literatura brasileira, como não lembrar determinados signos?  O solar Capitão Rodrigo Cambará, leonino sempre fulgurante, com seu gosto pela vida e pela carne, em todos os sentidos… Paulo Honório, de São Bernardo, um taurino determinado e persistente  que vai conquistando tudo que quer, tomando posse de terras e pessoas, mas que continua cego para coisas mais sutis… O virginiano Policarpo Quaresma, casto e de hábitos frugais, analítico, nervoso, crítico, meticuloso, detalhista, que passa a vida envolvido em sucessivas manias ou obsessões…

  Madame Bovary: libriana ou taurina? Ou as duas coisas?

  Ema Bovary, sensual e sonhadora, não consegue viver sem um parceiro. Um erotismo e uma ânsia de viver que não podem ser partilhados com o marido e que acabam se manifestando depois na voracidade consumista, na necessidade de ter coisas e de possuir a alma de cada amante.

 E descobrimos que Brás Cubas, nascido, a 20 de outubro de 1805, tinha quatro planetas em Libra! Será que Machado era mais bruxo do que se pensava? Atribui a este personagem uma data de nascimento com planetas e aspectos que sugerem frivolidade, um deixar-se levar pelas coisas, vaidade, sensualidade, uma  certa indolência e despreocupação com relação aos aspectos práticos da vida…

  Personagens de Machado: um prato cheio para a Astrologia…

 

Elas

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 Nós sempre fomos desdobráveis.

 As cordélias,

 as mãos que fiam e bordam

 e aceitam as palavras

 e servem os senhores.

 

 Eles só não viam que nossas

 mãos hábeis, nossas mãos

 treinavam, se adestravam

 para o ofício

 de destruir altares

 e pra empunharmos

 as adagas

 que cortarão os seus pescoços.

 Lígia Sávio

Água das Palavras

Alba Maria Joana - recortada

   Se abre os olhos na manhã, lembra a avó dizendo que era para lavá-los à meia-noite quando rompesse o  domingo de Aleluia, acordar e sentir a água nos olhos e afinal foi num domingo de Páscoa que a avó se foi, deixando ditos, provérbios, histórias inacabadas e lembranças da cidade portenha onde morou num bairro antigo. Se abre os olhos e se vê só no mundo, traz névoas nas pálpebras e se lembra que os maricás florescidos já em março eram sinal de inverno muito frio, de acordo com as palavras da avó. Traz todas estas coisas, estas cargas e toda a grande façanha talvez será transformar tudo numa herança mais leve, num passado mais solto. Então percebe que o que lhe resta são as palavras, já que as pessoas todas se foram (quem disse que ele tinha que ser amado?).

   E escreve porque é sua forma de alquimia, de transmutação. Afinal a herança mesmo foi verbal: todos liam, todos escreviam e a avó falava. E se abre os olhos de manhã, vê que não tem ninguém ao seu lado. Mas desta solidão e de um oco preenchido por palavras, forma talvez uma pedra, uma concha, uma pérola.

Lígia Savio